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Vamos falar de saúde?

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Modelos socioantropológicos de doença-saúde

CAPÍTULO VIII
MODELOS SOCIO-ANTROPOLÓGICOS DE DOENÇA-SAÚDE

Naomar de Almeida Filho
Maria Fernanda Peres
Maria Thereza Coelho
Monica Oliveira Nunes


Introdução
No campo das ciências sociais aplicadas à saúde, desde meados do Século XX, tem-se buscado com certa insistência definir objetivamente o conceito de doença e seus correlatos, com vistas à formulação de “teorias sociais da saúde”. Algumas dessas propostas, oriundas principalmente da Sociologia Médica anglo-saxônica, serão revisadas neste capítulo.
Contrapondo-se aos teóricos naturalistas (principalmente Boorse) que achavam ser possível uma abordagem objetiva e isenta de valor dos fenômenos da saúde-doença, Tristram Engelhardt (1975) apontou para a falácia da operação de se considerar construtos abstratos como coisas concretas, terminando por tratá-los como entes diferenciados e autônomos. Dessa maneira, justificava a definição de doença-disease como uma categoria científica destinada a explicar e predizer enfermidade, sugerindo que seria esta última, e não a enfermidade, um referente para os processos fenomênicos da saúde. Nas suas próprias palavras:
A adoção do conceito de doença pressupõe que trata-se de fenômenos físicos e mentais que podem ser correlacionados com eventos de dor e sofrimento, e assim os seus padrões podem ser explicados, seu curso pode ser predito e suas consequências podem ser influenciadas favoravelmente. (Engelhardt, 1975:137)
A crítica ao objetivismo das teorias naturalistas explícita nos enfoques fenomenológicos da saúde (Engelgardt, 1975; Margolis, 1976), que chegaram mais recentemente ao extremo de questionar a utilidade do próprio conceito de doença (Hesslow, 1993), aparentemente não encontrou eco entre os pesquisadores engajados no importante esforço de construção teórica de uma Sociologia Médica.
A teoria Pörn-Nordenfelt (Pörn, 1984; Pörn, 1993; Nordenfelt, 1993; Nordenfelt, 1995), desenvolvida como parte do esforço de justificativa econômica e filosófica do “neo-welfarismo” escandinavo, pretendia recuperar uma definição pragmática da Saúde a partir da atualização e retificação da abordagem bioestatística de Boorse. Como ponto de partida, Pörn (1984) afirmou que o oposto simétrico da Saúde não é nem patologia nem doença, e sim enfermidade. Ou seja, Saúde não seria ausência objetiva de doença e sim a inexistência de enfermidade. Não obstante as limitações conceituais e até uma certa ingenuidade filosófica desta formulação, é sem dúvida interessante como referência adaptativa para o conceito de Saúde (Pörn, 1993).
Por sua vez apresentando uma formulação teórica bastante estruturada que denomina de “fenomenologia da saúde”, Nordenfelt (1993) propôs uma distinção entre moléstia objetiva e moléstia subjetiva que, como consequência lógica do continuum saúde-doença de Pörn, desemboca no conceito-espelho de ‘saúde subjetiva’. A moléstia objetiva é definida pelo potencial de capacidade funcional não atingido por causa da doença, enquanto que a saúde objetiva corresponderia ao efetivo exercício dessa capacidade funcional. A moléstia (ou não-saúde) subjetiva teria dois componentes: (i) a consciência de doença (“mere belief or awareness that someone is ill”) e (ii) o sentimento de doença (“set of mental states associated with illness”). Dessa maneira, conforme postula Nordenfelt (1995), uma pessoa P é ou está subjetivamente sadia se e somente se:
(1) não se encontra subjetivamente enferma,
(2) acredita ou sabe que está sadia ou
(3) não experimenta um estado mental associado a alguma moléstia objetiva porventura existente.
Nessa mesma linha, Fulford (1994) considerou que nem mesmo o conceito de doença seria isento de valor, defendendo uma abordagem pragmática através do emprego de dois níveis distintos de análise, um nível descritivo e um nível interpretativo. Dado que o primeiro nível incorpora conceitos de doença onde predomina um alto grau de consenso, seria preciso investir mais nas análises de segundo nível. Neste caso, os conceitos de doença poderiam ser genericamente referidos como falhas (failures). A doença corresponderia a uma “falha da função”, enquanto que a moléstia resultaria de uma “falha da ação”. Finalmente, Fulford (1994) questiona a existência de um laço de determinação entre doença e moléstia, conforme postulado pela maioria dos autores revisados, indicando que a experiência concreta da moléstia não poderá ser explicada pelos conceitos de doença, devendo ser compreendida como fenomenologicamente dada.
Cabe neste momento um balanço parcial dessa questão. Inicialmente, deve-se assinalar que a quase totalidade dos autores e escolas cobertos na presente seção apresentam propostas marcadas por uma referência predominantemente biológica. Daí decorrem, quase que inevitavelmente, teorias não da Saúde mas dos processos patológicos e seus correlatos, onde a Saúde é vista necessariamente como ausência de doença. Como consequência, observa-se uma ênfase nos níveis subindividual e individual, onde efetivamente operam os processos patológicos e vivenciais (Kauffman, 1997). Esta cadeia lógica de omissões, que implica um foco reduzido ao conceito de doença e ao papel de doente, impossibilita uma conceituação coletiva da Saúde (a não ser, é claro, como somatório das ausências individuais de doença). Trata-se de uma flagrante ironia: apesar da abertura parsoniana, a Sociologia Médica não se mostrou capaz de construir uma teoria social da saúde.

O Complexo Doença-Moléstia-Enfermidade
Vejamos, de modo resumido, algumas contribuições das ciências humanas em saúde que, a partir da crítica aos modelos convencionais de doença, constituem modelos de saúde-enfermidade buscando a valorização de elementos psicossociais e culturais da saúde. A questão dos modelos de saúde-doença é tratada do ponto de vista da vertente interpretativa da Antropologia Médica contemporânea, convergindo para uma proposta integradora dos conceitos de doença, moléstia e enfermidade.
Arthur Kleinman, Leon Eisenberg e Byron Good (1978), buscando aprofundar e enriquecer a análise dos componentes não biológicos dos fenômenos da saúde-doença, sistematizaram um modelo que concedia especial importância teórica à noção de enfermidade-sickness, com ênfase nos aspectos sociais e culturais que paradoxalmente haviam sido desprezados pelas abordagens sociológicas anteriores. Essa proposição baseava-se na distinção entre as dimensões biológica e cultural da doença, correspondendo a duas categorias: doença e moléstia. O modelo equivalente encontra-se esquematizado na Figura 2, onde se destaca a definição (implícita) negativa de saúde como ausência de doença.


Figura 2 – Modelo de Kleinman/Good

Nessa perspectiva, o funcionamento patológico dos órgãos ou sistemas fisiológicos ocorreria independente do seu reconhecimento ou percepção pelo indivíduo ou ambiente social. Dentro de um referencial bastante congruente com a teoria de Boorse, para esse grupo de pesquisadores (Kleinman, Eisenberg & Good, 1978; Kleinman, 1980; 1986), doença refere-se a alterações ou disfunção de processos biológicos e/ou psicológicos, definidos de acordo com a concepção biomédica. A categoria moléstia, por outro lado, incorpora a experiência e a percepção individual relativa aos problemas decorrentes da doença, bem como à reação social, nesse caso, frente à enfermidade. O conceito de enfermidade diz respeito, portanto, aos processos de significação social da doença. Além dos significados culturais, incidiriam também aspectos simbólicos particulares formadores da própria moléstia no âmbito psicológico individual tanto quanto os significados criados pelo paciente para gerenciar o processo patológico (Massé, 1995).
Afirma Kleinman (1980) que a saúde, a moléstia e o cuidado são partes de um sistema cultural e, como tal, devem ser entendidas em suas relações mútuas. Examiná-las isoladamente distorce a compreensão da natureza de cada uma delas e como funcionam num dado contexto. Kleinman (1986) propôs ainda que uma das razões pelas quais distintos processos de cura persistem numa mesma sociedade é o fato deles agirem nas diferentes dimensões da doença. Sendo assim, é preciso considerar modelos capazes de conceber a saúde e a doença como resultantes da interação complexa de múltiplos fatores, nos níveis biológico, psicológico e sociológico, com uma terminologia não limitada à biomedicina. Para a construção de tais modelos, deve-se recorrer a novos métodos interdisciplinares, trabalhando simultaneamente com dados etnográficos, clínicos, epidemiológicos, históricos, sociais, políticos, econômicos, tecnológicos e psicológicos.
Posteriormente, esse mesmo autor (Kleinman, 1988; 1992) revisa parcialmente a sua posição objetivista original e defende que todas – doença, enfermidade e moléstia, seriam construções sociais. A moléstia refere-se à forma com que o sujeito doente percebe, expressa e lida com o processo de adoecimento. Já a enfermidade é anterior à doença, a qual é produzida a partir da reconstrução técnica do discurso profissional no encontro com o paciente, a partir de uma comunicação em torno do idioma culturalmente compartilhado da doença.
Byron Good e Mary-Jo Good (1980; 1982), reforçando a perspectiva do relativismo intra e intercultural da enfermidade, postularam que as fronteiras entre normal-patológico e saúde-doença seriam estabelecidas pelas experiências de enfermidade em diferentes culturas, pelos modos com os quais elas são narradas e pelos rituais empregados para reconstruir o mundo que o sofrimento destrói. Nessa perspectiva, a doença (e, por extensão, a saúde) não é uma coisa em si, nem mesmo a representação dessa coisa, mas um objeto fruto dessa interação, capaz de sintetizar múltiplos significados.
Good e Good (1980) propuseram um “modelo hermenêutico cultural” para compreender a racionalidade médica ocidental. Segundo esses autores, a interpretação dos sintomas enquanto manifestação da “realidade biológica” subjacente é característica da racionalidade clínica, por ser esta fundamentada epistemologicamente em uma teoria empiricista da linguagem. Segundo o modelo biomédico da doença-saúde, a prática clínica baseia-se no conhecimento de cadeias causais que operam no nível biológico, seguindo um roteiro de decodificação das queixas dos pacientes, a fim de identificar o processo patológico somático ou psicológico subjacente. Desta forma, pretende-se atingir um duplo objetivo: estabelecer o diagnóstico da doença e propor uma terapêutica eficaz e racional. Para Good e Good (1982), a atribuição do “significado de sintoma” a um estado fisiológico alterado mostra-se insuficiente como fundamento para a prática clínica, uma vez que fatores psicológicos, sociais e culturais influenciam a experiência da doença, sua manifestação e a expressão dos sintomas.
Um dos pontos centrais desse projeto de “reforma crítica” do saber médico consiste na distinção entre doença, moléstia e enfermidade. Em concordância com Kleinman, Good e Good  (1982) reafirmam que o processo patológico correlaciona-se ou é causado por alterações biológicas e/ou psicológicas enquanto que a enfermidade situa-se no domínio da linguagem e do significado e que, por isso, constitui-se em uma experiência humana. Segundo esses autores, a enfermidade é fundamentalmente semântica e a transformação da doença em uma experiência humana e em objeto de atenção médica dá-se através de um processo de atribuição de sentido. Desse modo, não só a enfermidade, mas também a doença constitui uma construção cultural, nesse caso a partir das teorias e redes de significados que compõem as diferentes subculturas médicas.
Significado não é produto de uma relação fechada entre significante e coisa (no sentido de uma realidade objetiva no universo físico), mas de uma rede de símbolos que se constrói na ação interpretativa, por eles denominada de ‘rede semântica’ - ou semantic network. A moléstia torna-se uma experiência dotada de sentido para cada sujeito particular. Mesmo assim, é importante considerar a relação existente entre os sentidos individuais e a rede de significados inerentes a cada contexto cultural mais amplo, ao qual pertencem os indivíduos. Daí deriva a idéia da enfermidade como uma “rede semântica”, no sentido de uma realidade construída através do processo de interpretação/significação, a qual fundamenta-se na trama de significados que estrutura a própria cultura e suas subculturas. Os sintomas, dotados de significados pelo menos individuais, possibilitam o acesso à rede semântica da biomedicina, ou seja, aos signos de doença culturalmente estabelecidos sob a forma de um “síndrome de significados” (Good & Good, 1980).
Buscando desenvolver uma abordagem da determinação das doenças nas sociedades com base em uma análise das relações sociais de produção, Allan Young (1980, 1982) apresentou uma crítica da teoria dos modelos de doença proposta por Kleinman e Good & Good. Por um lado, postulava que o modelo Kleinman-Good considera apenas o indivíduo como objeto e arena dos eventos significativos da enfermidade, não relatando os modos pelos quais as relações sociais a formam e a distribuem. Por outro lado, reconhecendo o seu avanço em relação ao modelo biomédico, este autor considerou que a distinção entre doença, moléstia e enfermidade mostra-se insuficiente para dar conta da dimensão social do processo de adoecimento.
Para superar estas limitações, Young (1980) defendeu a substituição do esquema de Kleinman-Good [doença = moléstia + enfermidade] por uma série tripla de categorias de nível hierárquico equivalente [doença, moléstia e enfermidade], mesmo concedendo maior relevância teórica ao componente ‘enfermidade’. No presente texto, propomos designar o modelo de Young como Complexo DME [Doença-Moléstia-Enfermidade], conforme representado na Figura 3.

Figura 3 – Modelo de Young

Young (1982) considerou ainda que, embora Kleinman tenha enfatizado os determinantes sociais dos modelos explanatórios e Good & Good tenham ressaltado as relações de poder nos discursos e práticas médicas, não empreenderam, efetivamente, uma análise destes aspectos em seus trabalhos. As práticas médicas revelam um importante componente político e ideológico, estruturando-se com base em relações de poder, que justificam uma distribuição social desigual das doenças e dos tratamentos, bem como as suas conseqüências. Por esse motivo, os elementos do Complexo DME, doença-moléstia-enfermidade não são termos neutros, mas sim compreendem um processo circular através do qual signos biológicos e comportamentais são significados socialmente como sintomas. Estes sintomas, por sua vez, são interpretados por uma semiologia que os associa a certas etiologias e que justifica intervenções cujos resultados terminam por legitimá-los como signos diagnósticos de certas doenças. O autor comenta ainda que, em sistemas médicos plurais, um conjunto de signos pode designar diferentes doenças e práticas terapêuticas que não se superpõem. As forças sociais é que determinam quais pessoas são acometidas por determinadas doenças, sofrem certas moléstias, exibem certas enfermidades e têm acesso a determinados tratamentos. A depender da posição sócio-econômica do enfermo, uma mesma doença implica diferentes enfermidades e moléstias e diversos processos de cura.
Para Young (1980), o conceito de doença deve incorporar o processo de atribuição de significados socialmente reconhecidos a signos de comportamentos desviantes e sinais biológicos, transformando-os em sintomas e eventos socialmente significantes. Em suas próprias palavras, “a enfermidade é um processo de socialização da doença e da moléstia” - “sickness is a process for socializing disease and illness” (Young, 1982:270). Esse processo de socialização da doença – ou, melhor ainda, de construção social da enfermidade – dá-se, em parte, no interior e através dos sistemas médicos, articulados aos circuitos ideológicos mais amplos na sociedade. Young afirma que essa dimensão ideológica, através dos saberes e práticas de saúde, reproduz visões específicas da ordem social e atuam no sentido da sua manutenção. As representações sobre a doença constituem, em última instância, elementos de mistificação de sua origem social e das condições sociais de produção do conhecimento. A tradução de formas de sofrimento (enfermidades) derivadas das relações de classe em termos médicos constitui um processo de neutralização que segue os interesses das classes hegemônicas. Ou seja, através do processo de medicalização, a condição de enfermo queda reduzida ao nível biológico individual, desconsiderando-se a sua dimensão social, política e histórica.
De fato, o foco sobre a dimensão da enfermidade-sickness permite superar a ênfase nos níveis individual ou micro-social (característica do enfoque de Kleinman, por exemplo). O modelo do Complexo DME de Young, no entanto, apesar de significar um importante avanço perante os seus predecessores, abre uma única possibilidade de incorporar a questão da Saúde: ainda e de novo a mera ausência de doença-enfermidade-moléstia.
Em conclusão, deve-se valorizar o esforço de esboçar uma teoria geral da saúde-doença-cuidado, distinto do empreendimento intelectual desses ilustres herdeiros da antropologia aplicada dos anos sessenta. Mesmo considerando a importância concedida às crenças e aos significados culturais e pessoais dos pacientes, bem como a proposta de integração dos diversos componentes dos sistemas de cuidado à saúde e seus respectivos modelos explanatórios, a visão desses teóricos sobre a questão conceitual da Saúde não teria sido suficientemente interdisciplinar. De fato, restrita à perspectiva da Saúde enquanto ausência de enfermidade, pouco teria contribuído para ampliar o escopo da abordagem médico-antropológica. Os modelos de Kleinman-Good e de Young realmente permaneceram limitados pelas práticas curativas, focalizando o retorno do enfermo ao funcionamento normal e à vida sadia, sem sequer problematizar o que seria essa normalidade e sem efetivamente analisar qual conceito de Saúde aí caberia.

Modelos Semiológicos de Saúde-Doença-Cuidado
Recentemente, Good (1994) desenvolveu uma perspectiva de crítica semiológica para a análise dos modelos de saúde-doença, reavaliando a concepção de rede semântica, nela apontando duas limitações:
1- A primeira diz respeito à redefinição do Complexo DME á luz da teoria linguística, dada a insuficiência da perspectiva clássica segundo a qual um símbolo condensa múltiplos significados. Para Good, é preciso reconhecer a diversidade de linguagens nacionais, étnicas, religiosas e profissionais no mundo contemporâneo, tanto quanto a multiplicidade de vozes, a individualidade destas vozes, enfim, um inter-diálogo e um alter-diálogo presentes na constituição dos discursos sobre a saúde-doença. A moléstia não é só constituída pelo ponto de vista individual, mas por múltiplos caminhos freqüentemente conflitantes; ela é nesse sentido dialógica. Ao mesmo tempo em que a enfermidade é sintetizada nas narrativas familiares, carregadas de políticas de gênero e de parentesco, ela (já como doença) é também objetivada como uma forma específica de desordem fisiológica nas apresentações de caso e conversas entre os médicos, mesmo que essas objetivações possam ser subvertidas ou resistidas pelos pacientes. A doença encontra-se imersa numa teia social onde todos negociam a constituição do objeto médico e a direção do corpo material.
2- A segunda limitação da análise das redes semânticas refere-se à reduzida possibilidade de representar a diversidade das formas de autoridade e resistência associadas aos elementos centrais do sistema médico. As redes semânticas, mesmo produzidas por estruturas de poder e de autoridade, podem prover os meios necessários para se entender como as formas hegemônicas são organizadas e reproduzidas, já que elas são culturalmente enraizadas e sustentam discursos e práticas. Entretanto, reconhece Good  (1994) que essa relação entre as estruturas semânticas e as relações hegemônicas de poder não tem sido suficientemente desenvolvida pelos principais autores dessa linha teórica, conforme a crítica radical de Young.
A noção de rede semântica deve ser então ampliada para indicar que o significado da doença não é unívoco, mas sim um produto de interconexões. Não mais apenas síndrome de significados, mas também síndrome de experiências, palavras, sentimentos e ações dos diferentes membros de uma sociedade. Esse conjunto de elementos é condensado nos símbolos essenciais do léxico médico, o que implica que tal diversidade pode ser sintetizada e objetivada culturalmente. As redes semânticas constituem estruturas profundas que ligam a enfermidade a valores culturais fundamentais de uma cultura, permanecendo, ao mesmo tempo, fora do conhecimento cultural explícito e da consciência dos membros que compõem a sociedade, apresentando-se como naturais. Esta nova pauta de análise das redes semânticas trata o Complexo DME como uma narrativa, ao mesmo tempo natural e cultural, resultante de processos concretos de doença parcialmente indeterminados, verdadeiro texto marcado por uma trama de diferentes perspectivas.
Avançando nessa perspectiva crítica, Gilles Bibeau e Ellen Corin afirmam que a antropologia cultural contemporânea, em suas vertentes interpretativa e fenomenológica, tem se mostrado incapaz de abordar a complexidade dos processos de saúde e doença. Isto resulta necessariamente da ênfase concedida ao estudo das experiências subjetivas de adoecimento e da reificação das narrativas sobre a doença, tomadas como textos autônomos, sem estabelecer, em qualquer dos casos, relações nem com o contexto sociocultural global nem com a dimensão “objetiva” da doença. Apesar de enfatizarem a importância dos valores culturais e a influência da concepção de rede semântica em seu trabalho, Bibeau, Corin e colaboradores (Bibeau, 1988; Corin & Lauzon, 1992; Corin, Bibeau & Uchôa, 1993; INECOM, 1993; Bibeau, 1994; Bibeau & Corin, 1994; Bibeau & Corin, 1995; Corin, 1995; Almeida Filho, Corin & Bibeau, 1998) reafirmam a necessidade de uma abordagem macro-social e histórica para a compreensão dos contextos locais. Isto significa estabelecer uma conexão epistemológica, teórica e metodológica entre diferentes dimensões da realidade, articulando uma teoria meta-sintética ou “perspectiva global” (Bibeau, 1988) que tem como pretensão integrar elementos semiológicos, interpretativos e pragmáticos essenciais para um modelo cultural da saúde-doença-cuidado. Na esfera particular da saúde, trata-se de explorar as relações de sistemas semiológicos de significação e condições externas de produção (contexto econômico-político e sua determinação histórica) com a experiência do adoecimento (Corin, 1995).
Buscando analisar a problemática dos diferentes níveis de determinação dos fenômenos da saúde, esses autores (Bibeau, 1994; Bibeau & Corin, 1994; Corin, 1995) propõem um esquema analítico fundado em duas categorias centrais: condições estruturantes e experiências organizadoras coletivas. Pretendem com estes conceitos representar os diferentes elementos contextuais (sociais e culturais) que se articulam para formar os sistemas de respostas sociais frente aos “dispositivos patogênicos estruturais”. As condições estruturantes abrangem o macrocontexto, ou seja, as restrições ambientais, as redes de poder político e as bases de desenvolvimento econômico, as heranças históricas e as condições cotidianas de existência (ou modos de vida). Ou seja, trata-se de condicionantes que atuam como elemento de modulação da cultura e como limitadoras da liberdade de função da espécie e da ação individual. As experiências organizadoras coletivas, por sua vez, representam os elementos do universo sócio-simbólico do grupo que atuam no sentido de manter a identidade grupal, os sistemas de valores e a organização social (Bibeau, 1988). Desse modo, ao postular que os sistemas semiológicos e os modos de produção articulam-se para produzir a experiência do adoecimento, os autores resgatam a pretensão de Young de considerar o contexto sócio-econômico, político e histórico nos processos de saúde-doença-cuidado.
Nessa perspectiva, Bibeau e Corin efetivamente apontam para uma abertura de sentido no campo da saúde, que implica um novo olhar sobre o Complexo DME, propondo a compreensão da experiência de adoecimento a partir da “perspectiva global” mencionada acima, construindo uma articulação entre trajetórias individuais, códigos culturais, contexto macro-social e determinação histórica. Para isso, propõem um quadro teórico de referencial antropológico, semiológico e fenomenológico para o estudo dos sistemas locais de significação e de ação frente aos problemas de saúde. Estes sistemas enraizam-se nas dinâmicas sociais e nos valores culturais centrais do grupo e fundamentam as construções individuais da experiência de adoecimento e as construções coletivas de produção social da doença (Bibeau, 1994; Bibeau & Corin, 1994; Bibeau & Corin, 1995; Corin, 1995).
Nas esferas de produção simbólica das comunidades, signos corporais, lingüísticos e comportamentais são transformados em sintomas de uma dada enfermidade, adquirindo significados causais específicos e gerando determinadas reações sociais, configurando enfim o que Bibeau & Corin (1994) propõem denominar de “sistema de signos, significados e práticas de saúde” (sspS). No geral, o conhecimento popular localmente construído é plural, fragmentado e até contraditório. A semiologia popular e os modelos culturais de interpretação não existem como um corpo de conhecimento explícito, mas são formados por um conjunto variado de elementos imaginários e simbólicos, ritualizados como racionais. Para esses autores, o conhecimento popular em torno da problemática da Saúde (e seus contrapontos, expressos no Complexo DME) se articula e se expressa em termos de sistemas de sspS construídos social e historicamente.
Os sspS configuram, portanto, uma semiologia popular contextualizada dos problemas de saúde. Para abordá-la de modo sistemático ou “científico”, os autores propõem procurar além dos critérios diagnósticos profissionais do modelo biomédico, documentando-se os casos particulares que concretamente constituem as variações culturais (Bibeau & Corin, 1994; Bibeau & Corin, 1995; Corin, 1995; Almeida Filho, Corin & Bibeau, 1998). No processo cotidiano de definição de categorias e reconhecimento dos casos dessas categorias, as pessoas “comuns” (a comunidade, para Bibeau e Corin) não necessariamente funcionam identificando categorias nítidas de pensamento, mas percebendo semelhanças, analogias e estabelecendo uma continuidade entre os casos de acordo com uma rica e flutuante variedade de critérios (Bibeau & Corin, 1994; Almeida Filho, Corin & Bibeau, 1998). As categorias componentes dos sistemas sspS são fragmentadas, contraditórias, parcialmente compartilhadas e construídas localmente, organizadas em múltiplos sistemas semânticos e praxiológicos (i.e. estruturados em práticas), historicamente contextualizados e acessíveis somente através de situações concretas - eventos, comportamentos e narrativas. Essa modalidade de categorização remete a objetos-modelo formados por “protótipos de Lakoff” no lugar de classificações hierárquicas de categorias discretas, mutuamente exclusivas e estáveis, tipificadas através de lógicas de consistência formal.
O conceito de “protótipo”, chave da teoria linguística de George Lakoff (1993), implica categorias de significado fluidas, imprecisas, com graus relativos de estabilidade, discriminadas por limites borrosos de definição. Por sua dissonância em relação à lógica categorial predominante no pensamento ocidental, de origem aristotélica, os protótipos de Lakoff podem ser melhor compreendidos por sistemas de lógica alternativos como a lógica fuzzy de Zadeh (conforme indica o próprio Lakoff) ou as lógicas paraconsistentes de Newton da Costa (1989).
A teoria dos sspS encontra-se evidentemente em processo de construção, ainda incompleta, cheia de lacunas e inconsistências. Distanciando-se das abordagens anteriormente analisadas, apresenta-se sem hesitação como fundamento para uma teoria geral da Saúde. Entretanto, mesmo que de forma indireta e atenuada, essa teoria continua centrada na enfermidade, justificada neste aspecto pela constatação de que a semiologia popular também se estrutura em torno do conceito de doença e seus correlatos. Por um lado, ao considerar apenas parcial e fragmentariamente o campo biológico subjacente ao Complexo DME, a abordagem dos sspS corre o risco de estruturar-se abstratamente como um antinaturalismo, privilegiando aspectos sociais, culturais e linguísticos da doença em detrimento dos elementos materiais e objetivos da doença, captados pela moderna tecnologia médica. Certamente que tomar o conhecimento médico e a prática clínica como construções culturais (o que efetivamente o são), por conseguinte objetos do inquirição antropológica, não desloca a questão da materialidade dos processos e fenômenos da saúde-doença-cuidado.
Por outro lado, essa teoria apenas esboça uma definição abrangente dos “dispositivos patogênicos estruturais” ao desenvolver uma análise dos diferentes níveis de operação dos sistemas de sspS restrita às polaridades local-global e micro-macro social, características do debate antropológico contemporâneo. Qualquer tratamento heuristicamente eficiente da questão da Saúde deverá certamente ancorá-la em modelos explicativos de maior complexidade e em espectros conceituais mais largos: do molecular-subindividual-sistêmico-ecológico na dimensão biológica ao individual-grupal-societal-cultural na dimensão histórica.

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